terça-feira, 8 de novembro de 2011

O Coração de Shai'Than - Capítulo Segundo

Capítulo Segundo – Verdades Ocultas

O calor dos Ermos roubava o descanso de qualquer um. Aquela terra agreste e seca era um inimigo mortal por si só, levando a vida dos que não estavam preparados para explorar seus recantos malditos. Lufadas de vento fortes eram capazes de provocar verdadeiras tempestades de areia vermelha e seca, que castigava a carne e estreitava os cânions pontiagudos. Um ambiente selvagem e cruel, apenas para os mais fortes e irresolutos.

Naquele vale marcado pela ruína, alguns bandos de ogros insistiam em fixar suas moradias e mesmo os orcs da Horda mantinham ali um posto avançado, como ligação entre o norte o sul dos Reinos do Leste. Os anões do Ferro Negro disputam o espaço com os escavadores e garimpeiros de Altaforja, na busca pelos artefatos que podem revelar o passado das raças mortais. Um local importante para arqueólogos, já que em seu extremo norte ficava a antiga fortaleza Titã de Uldaman.


Ao sudeste, um modesto acampamento da Aliança se erguia. Largas tendas de tom alaranjado foram armadas assim que o grupo de exploradores chegou. Alguns batedores partiram para as montanhas logo acima, mantendo uma vigília constante contra os perigos óbvios de um território desconhecido. Caçadores foram despachados e no lado oposto do acampamento, entre as imensas montanhas, o som das picaretas era constante.

Humanos, anões e alguns gnomos dedicavam-se às escavações com afinco. Todos eles membros da nobre Liga dos Exploradores, a procura de algum sinal, algum objeto ou qualquer outra indicação de que aquele era o local certo. Alguns ostentavam semblantes preocupados, já que entendiam a importância e a necessidade de só voltar com alguma peça antiga em suas mãos. Muitos ali não viam suas famílias há quase um ano devido às buscas desesperadas empreendidas por um sacerdote que atendia pelo nome de Darius, um velho servo da Luz que encarou uma tarefa divina como a sua última, antes de encarar a morte em paz.

O calor ali, em uma das maiores tendas, era tão igual ao de uma tenda menor. Larga e espaçosa detinha paredes ocupadas por sacas, caixotes e ferramentas. Um pouco afastado do centro ficava um imenso divã acolchoado e ao redor deste, espalhadas pelo chão, imensas almofadas de cores vivas. Um pequeno santuário para o homem culpado por aquele serviço. O ancião, com pouco mais do que setenta anos, já tinha o corpo alquebrado e suas pernas não mais sustentavam o peso dos ombros que um dia foram largos. A barba espessa e o cabelo longo, um tanto desgrenhado e mal cuidado, eram as poucas lembranças de sua juventude marcada por grandes feitos e descobertas. Encontrava-se deitado, com os olhos brancos vidrados na cobertura da tenda. O peito descoberto exibia um tórax branco de pele caída e suada, que subia e descia devagar; um dos poucos sinais de que aquela figura deitada, com as pernas inúteis recolhidas sob uma fina manta de seda, ainda tinha algum lampejo de vida.

- Gre... Greyval? Venha aqui... - a voz soou fraca e rouca; falha, carregando o peso da idade em cada letra.

O anão continuava a se perguntar como Darius poderia saber de sua presença, mas o velho sempre fazia isso. De alguma forma, seus olhos cegos eram capazes de ver melhor que os do anão. Este, por sua vez, caminhou a passos lentos. Estava vestido com uma camisa de anéis rebitados e um elmo de metal. O malho descansava nas costas, com a imensa cabeça em forma de grifo balançando conforme caminhava.

- Irmão Darius... - Greyval respondeu num tom baixo, para não causar tumulto. Estava a sós com o ancião, nenhuma de suas amas estava ali, mas o ruivo sabia que chegariam em breve para banharem o idoso.

- Nós estamos perto, eu posso sentir... - ensaiou um sorriso de gengivas vermelhas e lábios trêmulos, enquanto o rosto se enrugava todo. Uma das mãos tateou o ar e, com os dedos tão finos e frágeis quanto gravetos que caem de uma árvore ressecada, tocou no braço do anão e tentou apertar; em vão. - Não apenas eu sinto, amigo. Os olhos da corrupção se voltaram para o vale assim que chegamos. Eles sabem que estamos aqui. Tenha cuidado, Greyval. E me prometa, pela Luz, que não me abandonará até que eu tenha aquilo que procuro há anos. - surpreendentemente, os dedos frágeis de Darius impuseram uma força pouco mais notória, esta o bastante para que o guerreiro pudesse sentir o calor de seus dedos.

- Eu prometo, Irmão. Não deve se preocupar com isso. Apesar de não ter aceitado meu conselho, e ter ficado em Ventobravo, sob cuidados melhores, não deixarei nenhuma mão lhe toque com vis intenções. Eu e Ardmor estamos aqui para zelar pela tua segurança. – pronunciou-se em voz baixa, tranquilo, tentando passar este sentimento ao sacerdote.

- Hm... Ardmor... - sussurrou Darius, soltando o braço de Greyval e devolvendo a mão ao ventre inchado e suado. - Teu amigo tem os olhos negros, irmão. Confio em você, mas nele apenas deposito a fé na lealdade do ouro que pago. - o anão estranhou o ditame do velho, mas não se deixou abalar. Até onde se lembrava, Darius jamais havia visto os olhos de seu irmão de armas.

- Não se preocupe com estes detalhes, o senhor precisa descansar. - o anão suspirou pesadamente, levando uma das mãos ao rosto e apertando dois dedos entre os olhos. Balançou a cabeça em sinal de negativo. - O senhor não deveria ter vindo... Fui um tolo em apoiar esta ideia.

- Heh, heh... Sabia que ninguém teria me impedido, Greyval. Sou um velho turrão, assim como você. Agora deixe de tolices e apanhe meus livros. Quero lhe mostrar uma coisa.

Acatando, o anão se dirigiu até uma grande mesa de madeira no centro da tenda. Inúmeros papéis estavam espalhados pela superfície. Alguns mapas com anotações de rotas seguras desde Ventobravo até os Ermos. Notas contendo os suprimentos da expedição e toda a logística necessária para se realizar a operação. Greyval mirou os dedos em um tomo largo, um volume pesado com capa de couro e pelo menos mil páginas. Apanhou aquele pesado livro e voltou na direção do ancião. Foi o próprio anão quem escreveu no livro nos últimos dias, enquanto Darius lhe ditava algumas palavras.

- Leia novamente para mim, Greyval, por favor. Leia sobre a lenda do Coração... - os olhos do idoso brilharam, mas antes que o anão pudesse procurar pela página da lenda a qual já havia lido dezenas de vezes, vozes chamaram a atenção de ambos e vinham lá de fora. Sem aviso, um vulto avolumou-se na entrada da tenda e fez o pano correr num movimento rápido. Era Ardmor, com um riso de satisfação nos lábios e um brilho soturno em seus olhos negros.

- Encontramos algo, venha! - e nem mesmo esperou resposta, abandonando Greyval novamente. O anão fechou o livro e antes que precisasse avisar a Darius que partiria, o velho se adiantou: - Eu lhe disse... hah, haha... Eu lhe disse!

2 comentários:

  1. Muito bom!

    Mas tu tinhas razão; temos apenas mais perguntas...

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  2. Obrigado pela leitura, Odin! Acho que estou melhorando um pouco na escrita.

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